Apontamentos sobre a história do Seminário Nossa Senhora da Boa Morte
Dr. João Paulo Rodrigues Pereira
Dr. José Rubens Lima Jardilino
O Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) da Universidade Federal de Ouro Preto está instalado, desde sua fundação, no conjunto arquitetônico e histórico do antigo Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte, também conhecido como Seminário de Mariana.
Silvério Gomes Pimenta (2020), que ingressou nesta instituição como aluno em 1855, informa que o prédio encontrado por Dom Viçoso, bispo entre 1844 e 1875, era o mesmo deixado pelo primeiro bispo da Diocese de Mariana, falecido em 1764.
Pimenta também descreve detalhadamente o espaço escolar, que estava dividido em quatro áreas. O edifício tinha forma retangular, com laterais maiores que a frente e o fundo, apresentando certa simetria. O espaço de lazer localizava-se no centro do edifício e podia ser facilmente vigiado. As salas de aula ficavam no lado direito da capela, enquanto o lado esquerdo abrigava os dormitórios, divididos em pequenos cubículos que acomodavam três ou quatro estudantes. Em um lance puxado do fundo do prédio para fora se encontrava o refeitório, a cozinha e a despensa (Pimenta, 2020, p. 251-252).
Para ilustrar melhor essa descrição, apresentamos uma imagem aérea atual do prédio. “As marcações 3 e 4 referem-se às estruturas acrescentadas na segunda metade do século XX, no período do ICHS. As marcações 1 e 2 referem-se aos acréscimos realizados no período de Dom Viçoso; a marcação 1 corresponde ao anexo feito ao lado esquerdo da capela, e a marcação 2 refere-se
Ainda no século XVIII, é interessante destacar duas outras informações: uma sobre os professores e outra sobre a construção da capela. Os primeiros professores dessa instituição foram os Jesuítas. Eles permaneceram por pouco tempo, pois, devido às políticas pombalinas, esses religiosos tiveram que deixar o país na década de 1760. Contudo, a organização das atividades e estruturas educacionais ficaram a cargo deles. Há evidências de que o primeiro regulamento dessa instituição, que vigorou até 1820, teria sido escrito por esses religiosos. A característica mais evidente associada à marca Jesuítica são os feriados, festas e santos de devoção. Por exemplo, o capítulo 12º de tal regulamento prescreve a comemoração da festa de Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, e de São Luiz Gonzaga, um santo de devoção jesuíta.
Por meio desse documento, também é possível obter algumas informações sobre a vida interna dos estudantes. Dividido em 13 partes, intituladas estatutos, o regulamento tratava “de forma bem objetiva, os momentos da comunidade escolar desde o levantar até o repouso noturno, destacando [...] as regras internas de conduta e os castigos” (Pereira, 2023, p.197). A título de exemplo, do sétimo ao décimo estatuto, o regulamento aborda as proibições relacionadas à conduta moral dos estudantes, como: tratar os outros com respeito, não riscar livros ou paredes, não entrar nos cubículos (quartos) dos colegas, não falar com mulheres e pessoas na portaria sem autorização, e não sair à cidade sem a companhia do reitor ou de alguém por ele designado. Há também, no décimo estatuto, proibições quanto ao porte de armas.
Sobre a capela, temos uma informação baseada nas pesquisas da historiadora Mônica Maria Lopes Lage. Em 1780, José Pereira Arouca foi contratado para a “reconstrução da capela [...]. A historiografia que trata do Seminário afirma que a primeira capela havia sido edificada em 1752 [...]. José das Torres Quintanilha, um religioso próximo a Dom Frei Manuel da Cruz, contratou um pedreiro chamado Antônio Carlos Cardoso para construir a capela. Porém, para a infelicidade dos comitentes, houve inúmeros problemas com o arrematante. Parece que ele não cumpriu os acordos estabelecidos e não entregou a obra conforme o combinado. Estranhamente, somente vinte e nove anos depois, em 1780, foi que José Pereira Arouca foi contratado para reedificar a capela do Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte” (2018, p.135).
Já no século XIX, o prédio do seminário passou por uma série de reformas. Em 1820, durante o período de Dom José da Santíssima Trindade, bispo de Mariana entre 1819 e 1835, o prédio passou por sua primeira reforma. Além disso, foi reestruturada a fazenda do Seminário, que passou a contribuir financeiramente com a instituição, e foi criado um novo regulamento (Oliveira, 1998, p. 28).
Não se sabe a natureza exata da reforma no prédio, mas é conhecido pelo fato de ter ficado fechado, sem atividades educacionais, por um longo período. Entre 1816 e 1818, Saint-Hilaire, um viajante francês, visitou a província mineira e relatou, entre outras coisas, a condição do prédio do Seminário nos seguintes termos: “Próximo ao palácio episcopal e à margem direita do ribeirão do Carmo, veem-se os edifícios do antigo seminário. Formam um quadrilátero alongado, bastante irregular e são imensos; mas como estão abandonados há vários anos, ameaçam ruína por todos os lados” (1938, p. 151). O mesmo autor ainda ressalta que uma das causas do fechamento dessa instituição foi o enfraquecimento das atividades mineradoras. Parece que, em 1816, o Seminário já estava fechado, pois, nesse ano, a Câmara de Mariana pediu ao Rei Dom João VI permissão para abrir um Colégio de Artes e Disciplina Eclesiástica no prédio do Seminário (Trindade, 1953, p. 393). A intenção da Câmara era formar um colégio para a instrução da população e formação do clero.
Outro fato relevante, já no período imperial brasileiro, foi o embate político entre o bispo e o professor de filosofia, padre Antônio José Ribeiro Bhering. Dom Frei José da Santíssima Trindade acusou esse professor de ensinar filosofias proibidas (correntes iluministas) e o expulsou em 1829. “Bhering e os liberais atacaram, através dos jornais, o bispo e o seminário. O próprio viés estritamente moral do regulamento serviu de munição para o padre questionar as atitudes do bispo junto ao Conselho Provincial de Minas” (Jardilino; Pereira, 2021, p. 12). Esse embate acabou desgastando a imagem social do Seminário e enfraquecendo suas atividades educacionais. O seminário funcionou até 1842, quando foi novamente fechado. Nesse período, o prédio foi usado pelas tropas do governo como quartel no período da revolução liberal, ficando bem danificado. Conforme Pimenta, o governo “pagou a hospedagem com bons estragos na casa” (2020, p. 174). Isso gerou um segundo momento de reformas e alterações no prédio do Seminário, durante o período de Dom Antônio Ferreira Viçoso, que assumiu a Diocese de Mariana em 1844.
Considerado um reformador do clero, esse bispo empreendeu uma série de mudanças na instituição, por considerar a educação uma ferramenta fundamental para a reforma dos costumes. Destacamos duas grandes alterações: uma nos espaços escolares e outra na organização acadêmica, envolvendo o tempo escolar, o currículo e os atores pedagógicos.
Quanto aos espaços escolares, Pimenta (2020), que publicou em 1876 a principal biografia de Dom Viçoso, descreve detalhadamente as modificações no edifício do Seminário. Primeiro, o prédio foi ampliado com duas construções. Foi construída uma estrutura ao lado esquerdo da capela, de quem olha de frente para ela. Se observarmos a Figura 1 deste texto, essa estrutura não existe. Na Figura 2, essa estrutura é a marcação 1, do Bloco 2. A segunda construção foi feita no pátio do edifício, no espaço de lazer. Ela iniciava ao fundo da capela e atravessava todo o pátio até o fundo do prédio, dividindo “pelo meio o grande pátio que havia antes” (2020, p. 253). Na Figura 2, essa construção corresponde à marcação 2.
Além disso, as alturas dos salões foram elevadas. Pimenta ainda destaca que houve alterações nos espaços internos do edifício. Os pequenos quartos da estrutura original foram transformados em grandes “salões capazes de conter quarenta ou cinquenta rapazes cada um, por ser esta divisão muito mais favorável à inspeção dos alunos e à manutenção da disciplina” (2020, p. 253).
Quanto à mudança na organização acadêmica, houve, primeiro, uma reestruturação dos horários das atividades internas, por um novo regulamento, organizadas em torno das práticas religiosas, atividades educacionais, alimentação e recreação, da seguinte forma: 5h30 - levantar; 5h45 - atos da manhã nos salões, ajoelhando-se no meio, um atrás do outro; 6h - estudo com silêncio rigoroso; 7h - missa e, depois, café da manhã; 8h - estudo em silêncio rigoroso; 9h30 - aula por duas horas; 11h45 - almoço e recreação; 15h30 - aula por duas horas; 17h30 - cantochão para os eclesiásticos e recreação para os demais; 18h30 - estudo em silêncio rigoroso; 19h - jantar e recreação; 20h30 - exame e recolhimento. “É permitido até as 22h o estudo, e então devem apagar-se as luzes” (Pimenta, 2020, p.182).
No período de Dom Viçoso, os padres lazaristas franceses chegaram para assumir as funções administrativas e pedagógicas do Seminário. Os primeiros chegaram em 1849, juntamente com algumas irmãs das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo, que fundaram, em 1850, o Colégio da Providência em Mariana, que existe até hoje. Esses religiosos, aos poucos, assumiram as funções pedagógicas e administrativas do Seminário, permanecendo na instituição, até 1966, quando os padres diocesanos assumiram a direção geral do Seminário.
Os cursos oferecidos no seminário eram de Humanidades e Teologia. Nesse período, as grades curriculares tornaram-se mais robustas. Foram catalogadas 14 disciplinas do curso de Humanidades (Latim, Francês, Inglês, Retórica, Língua Nacional, Geografia, Aritmética, Álgebra, Geometria, Filosofia Racional, Filosofia Moral, Música, Catecismo, História) e 13 para o curso de Teologia (Teologia Moral, História Eclesiástica, Direito Canônico, Liturgia, Canto Gregoriano, Teologia Dogmática, Instituições Canônicas, História Sagrada, Escritura Sagrada, Música, Canto Gregoriano, Grego) (Pereira, 2023).
O curso de Humanidades era propriamente o ensino secundário, preparatório para o ensino superior ou para cursar as matérias do curso teológico, específicas para os candidatos ao sacerdócio. Aqui, é importante destacar que, desde sua fundação, essa instituição recebia alunos que não almejavam a vida religiosa, os chamados colegiais, que poderiam ser a maior parte dos estudantes. A título de exemplo, no período de Dom Viçoso, foram catalogadas, em 31 anos, 1615 matrículas. Desses, somente 318 foram ordenados sacerdotes (Pereira, 2023). Os colegiais frequentavam o seminário somente para cursar as matérias do ensino secundário, tendo em vista os exames preparatórios para os cursos superiores. Outro fato relevante sobre os cursos é que, em 1854, o curso de Teologia foi transferido para o Colégio do Caraça, na região de Catas Altas, MG, devido à epidemia de varíola em Mariana, permanecendo lá até 1882.
Trindade (1951, p. 57) afirma que, para o retorno dos alunos do Caraça para o Seminário de Mariana, foram feitas modificações internas no prédio, sem especificá-las. Ele afirma apenas que, em um primeiro projeto, no sentido de ampliar os espaços internos para os estudantes, foi proposto, mas não aprovado pelo prelado, suprimir o quarto do bispo. Trindade também afirma que, entre 1882 e 1900, ocorreu o período de maior número de matrículas na instituição, com uma média de 200 alunos.
Já na primeira metade do século XX, foram feitas reformas de modernização do edifício, que incluíram instalações elétricas e higiênicas e laboratórios para aulas de ciências (Trindade, 1951, p. 61-75). Contudo, a principal alteração no Seminário foi a construção de outro edifício em Mariana, que, a partir de 1934, passou a ser a casa de formação específica para os alunos do curso de Teologia, chamado também de Seminário Maior. A partir dessa data, o antigo prédio voltou a ser apenas a casa de formação do Seminário Menor. Na segunda metade do século XX, esse edifício foi cedido à responsabilidade da UFOP, que fundou o Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS), a Casa Acadêmica que hoje habitamos, não sem embates, a cada momento desta história do presente, entre a Igreja e a comunidade científica.
Referencias:
IPATRIMÔNIO. Mariana – Seminário Menor e Capela de Nossa Senhora da Boa Morte – Imagem: Google Street View. Disponível em: https://www.ipatrimonio.org/mariana-seminario-menor-e-capela-de-nossa-senhora-da-boa-morte/mariana-seminario-menor-e-capela-de-nossa-senhora-da-boa-morte-imagem-google-street-view2/
JARDILINO, J. R. L.; PEREIRA, J. P. R. História de uma instituição escolar no Brasil: o seminário ‘Nossa Senhora da Boa Morte’ (1821-1888). Revista Brasileira de História da Educação, v. 21, n. 1, p. 185, 23 jun. 2021. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/article/view/56450/751375152325.
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